Fim de semana passado, tivemos mais uma reunião bem familiar na casa de nossa "família" brasileira na Coreia. Renato e Selma, como de costume, nos ofereceram um banquete e sua amável hospitalidade para que pudéssemos nos despedir de Rebeca que estaria de volta ao Brasil no dia seguinte.
Mais uma vez, aceitem meus agradecimentos do fundo do coração. Vocês não sabem o quanto isso é importante para este bando de estudantes brasileiros perdidos aqui do outro lado do mundo! :)
No vai e vem das conversas, surgiu um tópico interessante (olha o linguista falando!): língua.
Citou-se o exemplo da língua portuguesa que é muito sisuda e que não aceita muito no papel o que fazemos com ela quando falamos. Por que é que em inglês se pode escrever "don't", "isn't" e o diabo a quatro e em português não podemos escrever "tô", "tamo"?
Desse ponto em diante, começou o desfile de lendas urbanas tão bem conhecidas por nós brasileiros de que brasileiro não sabe falar, de que brasileiro fala português errado, de que maranhense fala o melhor português, e por aí vai.
Isso tudo tem origem em, nada mais nada menos, nosso passado colonial.
Por ter sido o Brasil um país colonizado, e por terem sido os colonizadores os portugueses, a forma de se "separar o joio do trigo" sempre foi a forma de se falar a língua do Estado. Os colonizados, falando o português, nunca falariam com o mesmo nível e com a mesma desenvoltura com a qual os colonizadores, donos da língua, a falavam. A língua foi, e de uma forma geral ainda é, uma forma de distinção social, uma forma de dizer: "eu sou colonizador e você é colonizado". É óbvio que, com cinco séculos de Brasil, as coisas mudam devagar e o Brasil foi aos poucos criando sua identidade, remendando os vários trapinhos culturais de cada novo povo imigrante em uma colcha de retalhos que se tornou nossa cultura. Com isso, é óbvio também que a língua havia de mudar. Não uma mudança planejada e bem estudada pelos grandes poetas ou grandes gramáticos, mas uma mudança gerada desses mesmos retalhos que formaram nossa tão diversificada cultura.
No entanto, ainda hoje, depois de quase dois séculos de independência e uma separação cultural quase total de Portugal (Quem é que tem contato com produções artísticas em qualquer meio que tenham sido produzidas em Portugal? Quem é que conhece algo do Portugal contemporâneo que seja baseado em fatos e não em ouvi-dizeres? São pouquíssimos os brasileiros que têm essa oportunidade.), a língua continua a ser o termômetro pelo qual medimos as classes sociais em nosso país.
O "português", aquele que aprendemos na escola, é uma língua "estrangeira" para o brasileiro, quem quer que seja. Não há uma só pessoa dentre os quase 200 milhões de habitantes de nosso país que se comunique exclusivamente fazendo uso daquela língua. Esse português é apenas escrito e não existe de outra forma que não seja essa. Fazer uso da língua portuguesa escrita na fala, é uma figura de estilo, de retórica, que se propõe a frisar que o falante está se pondo acima no pedestal de classes. É como o coreano com suas várias formas de níveis de fala, só que nosso caso, não é institucionalizado, não é gramaticalizado como acontece por aqui.
Essa "língua portuguesa", a da escola, além de ser uma forma de peneirar a intelectualidade das pessoas, de separar "o joio do trigo", é também um instrumento de unificação. Quem já viajou por este nosso Brazilzão sabe como é. Dê uma volta por nosso país, principalmente pelas regiões de colonização antiga (leia-se perto do litoral), do Rio Grande do Sul, passando por Santa Catarina, subindo pelo Paraná, passando em São Paulo e Rio, subindo para Minas e de lá para a Bahia. Da Bahia, vá por Pernambuco passando pelo litoral até Fortaleza, continuando até o Maranhão e Belém. São inúmeros tipos de falares, de sotaques (como nós brasileiros gostamos de dizer). Na Europa, por bem menos que isso, eles já teriam dito que seriam línguas diferentes. A questão é que o governo brasileiro (ou português, naquele tempo) sempre foi centralizador: o Brasil sempre foi uno e indivisível. E a forma mais evidente de uma cultura, a que está à mostra a todo tempo, é a língua, a forma de falar está intrínsecamente ligada ao grupo ao qual o falante pertence, do qual ele compartilha crenças e costumes, comidas e tradições. No caso do Brasil, naquela época, afirmar que temos dialetos ou que não falamos a língua portuguesa e sim a língua brasileira (que por acaso era o nome do Tupi: "língua brasílica"), seria afirmar a fragilidade do Estado e da nação brasileira que se romperia em pequenos mini-nações. Não! O governo nunca quis isso, e a forma mais efetiva para se fazer isso foi pôr em prática uma política linguística de ensino universal da língua portuguesa. Isso desde o Marquês de Pombal que decretou duras penas para quem falasse outra língua que não fosse a língua portuguesa. (Por medo de perder o controle da colônia.)
Essa política vem se mantendo firme e forte durante os séculos até os dias de hoje.
O grande problema é que isso tudo já está tão enraizado em nossa mente que não conseguimos analizar a língua como uma emanação cultural de um povo que, como já disse anteriormente, compartilha de um lugar, de uma história, de uma cultura em comum. No final das contas, a língua nada mais é que um instrumento de comunicação. E aí entra a questão do "falar errado".
Falar errado é o quê? É não falar como se escreve? E escrever errado é escrever como se fala? Então o erro está na própria língua que aceita (à primeira vista) duas formas incompatíveis de comunicação! Existe a língua portuguesa que é exclusivamente aceita apenas no registro escrito, e a "outra" língua portuguesa que é única e exclusivamente aceita na forma oral ainda sob certas circunstâncias. Esse tipo de pensamento é ilógico!
O grande xis da questão é: existe uma língua, a chamada língua portuguesa, aquela que aprendemos na escola, que é a normatização de diversos tipos de dialetos, dos quais a grande maioria tem sua origem no território português que são avalizados por grandes obras literárias e tradições linguísticas que vêm já de há séculos; ao passo que existe outra língua, ou melhor, outras línguas que são instrumentos que pessoas de certas regiões vêm fazendo uso de há muito tempo, ligadas a sua cultura e tradições que são passadas de pais para filhos como tradição oral. São "línguas" diferentes. Assim como o português, o francês, o espanhol, o catalão, o galego, o italiano, o provençal, o romeno são nada mais nada menos que dialetos do latim. Pelo prisma do "falar errado", desde o início da história nacional das diversas nações modernas europeias, em Portugal, na Espanha, na França, na Itália, na Romênia, todos falam latim errado! Tanto é que demorou muito tempo, muitos séculos, para que aceitassem que a língua falada nessas regiões e a língua escrita, o latim, já não eram mais a mesma coisa! Só aí é que a língua vulgar (língua do vulgo, do povo) recebeu status de língua e foi aceita nos círculos acadêmicos e artísticos, foi aí que começou a onda de obras literárias como "os Lusíadas", "Dom Quixote", "a Divina Comédia" e tantas outras.
A questão do falar errado é, então, algo completamente discutível e que depende muitíssimo de variados pontos de vista. A única razão pela qual mantemos a língua portuguesa congelada e normatizada em todas aquelas regras gramaticais que beiram o rigor das matemáticas é que se não assim fizéssemos, talvez hoje já teríamos línguas tão distintas como o português e o romeno entre o Rio Grande do Sul e o Pará, por exemplo. Essa foi a forma pela qual hoje ainda podemos pegar um livro de Saramago, escrito do outro lado do Atlântico, e lê-lo e compreendê-lo, ainda que seja às vezes difícil entender o que os portugueses dizem. A língua, no império português, foi um dos mais fortes elementos de unificação e de colonização. Mais ou menos o que se passa hoje com o neo-imperialismo dos EUA, quem sabe inglês se dá bem, consegue bons empregos, "fica rico"; no "nosso" império português era a mesma coisa: o colonizado, se quisesse ter uma vida boa, teria que aprender e falar um bom português para conseguir algo na vida. E esse pensamento continua com tanta gente com tantos preconceitos linguísticos.
"Falar errado", na forma não-preconceituosa do termo, seria uma pessoa que quer transmitir uma ideia que tem em sua mente e a pessoa que recebe a informação reconstrói uma ideia completamente diferente da original. Um exemplo extremado:
O falante A tem sede e deseja um copo de água. Formula a ideia de pedir um copo de água e a reproduz por meio de palavras. O ouvinte B ouve a mensagem sonora e a decodifica de acordo com o seu conhecimento do código linguístico e reformula a ideia presente na mente de A em sua própria mente. Se B der um copo de água a A, a mensagem foi transferida com sucesso. No entanto, A, por ter codificado sua mensagem de forma errada, pode receber algo que não seja água. Nesse caso, ele "falou errado".
"Falar errado" é um fato muito comum no caso de falantes de segunda língua. Isso acontece com muita frequência comigo aqui na Coreia. Algumas vezes eu "falo errado" coreano, ou "entendo errado" coreano. No entanto, isso não é comum com falantes nativos. Somos capazes de transmitir nossas mensagens de forma que atinjam o destino e possam ser decodificadas sem problema pelos ouvintes por meio do mesmo código linguístico que ambos possuem, não importando qual é o código!
Foram os ricos meninos à Europa, ao passo que os menos providos, a Ubatuba.
Os menino rico foi pr'Europa. Os pobre foi pra Ubatuba. (Dialeto ao qual estou mais acostumado e que uso quando não preciso falar na língua padrão.)
As duas mensagens acima carregam a mesma informação codificadas por dois tipos diferentes de gramática. A de cima, mais elaborada e tradicional, que tem o aval dos livros de gramática e da tradição luso-brasileira; a de baixo, entretanto, faz uso de uma gramática não oficial, e não registrada em livros. No entanto, a segunda, é uma gramática como qualquer outra e possui regras, exceções e restrições. Um falante dessa gramática nunca teria dito frases como:
*O menino ricos foi pr'Europa. O pobres foi pra Ubatuba.
Por quê? Pelo simples fato de que há regras claras registradas pela gramática desse dialeto que impedem que a desinência do plural seja posta em qualquer outra posição que não seja a primeira posição do sintagma: meninos; os menino; meus menino; esses menino bonito.
Outro fato que não ocorreria seria a quebra da posição dos elementos da frase. A imensa maioria das frases segue a posição SVC (sujeito, verbo e complementos). A língua padrão é mais flexível nesse ponto, como se pode ver no primeiro exemplo (VSC): "foram os meninos à Europa".
Outro ponto são as mudanças fonéticas que também seguem regras. Na frase "os pobre foi pra Ubatuba", o verbo "foi" está em variação livre com a forma do plural "fôro" (de "foram"). A forma "fôro" é interessante foneticamente pela queda da nasal em posição átona final. Isso acontece em todas as palavras (pelo menos as que eu consigo lembrar agora): homem > home, garagem > garage, viagem > viage, etc. Não acontece com também porque aqui a posição é tônica. Mesmo neologismos seguem essa regra: Bin Laden > Bin Lade! (Bin não muda porque é tônica!)
E assim vamos... Se deixar, eu fico mais uma hora escrevendo... O problema é que eu não posso. Tenho experiências para fazer e uma tese pra escrever. Se quiserem se aprofundar, mandem comentários. Ficarei feliz de discutir.
Um abraço pra quem teve paciência de ler tudo isso até o fim.
Falô!
Um comentário:
Ótimo artigo! Nó, mai eu quiria tant podê iscrevê du jeit qui eu falu sem sofrê cu preconceit da sociedade... :P (fala, sério, a internautaiada já tá escrevendo mais ou menos assim a gente acha um absurdo né?)
Mas um comentário sobre os diferentes níveis de hierarquia no coreano. Acho que é diferente do português por dois motivos. 1) os "honoríficos" e "respeitadores" foram todos padronizados e aceitos por todos, e 2) a estratificação na Coreia é muito mais por idade do que por classe social, como no Brasil. Acho até que o argumento 2 é a causa do argumento 1. "Banmal" é aceito como correto porque todo mundo o usa, contanto que seja mais velho ou em nível de igualdade. Não importa se o cara é o dono da Samsung ou um catador de lixo. Da mesma maneira o "jongdaemal" também vai ser usado por todos, sejam pobres ou ricos, desde que estejam falando com alguém mais velho (sim, e também com patrão, doutor, professor...).
No Brasil o sujeito pobre e semi-analfabeto tenta ser "educado" com o patrão não pela língua, mas pela postura de submissão. Imagine um peão se dirigindo ao seu patrão, um deputado fazendeiro (rico, claro). Ele vai tirar o chapéu da cabeça, encolher os ombros, abrandar a voz, mas vai continuar usando o dialeto caipira: "sabe quê qui é dotô, é qui as vaca qui tava prenha isturdia num guentô dispois qui atolô no brejo..." (exemplo tosco)
Mas, comentando também o que você disse bem no início do post. Faço minhas as suas palavras de agradecimento à Selma e ao Renato! ^_^ A gente só precisa variar os tópicos das nossas conversas, porque o assunto "diferenças linguísticas" já tá ficando repetitivo quando a gente encontra... hehehe
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